Por Lúcia Beatriz Torres/Serendipity Comunicaçāo
junho/2016
As potencialidades de aplicação biomédica da Química Inorgânica são diversas: diagnóstico por imagem, suplementos minerais, fármacos de diferentes classes terapêuticas, compostos para remover metais de um órgão em caso de contaminação. Medicamentos à base de metais têm sido usados desde a Antiguidade. Entretanto, as estratégias da Química Inorgânica no planejamento de metalofármacos são ainda hoje pouco exploradas pela indústria farmacêutica. O que pode representar uma oportunidade de negócio para pesquisadores que queiram se dedicar à área.
“Criar e Empreender” foi o tema escolhido para permear as discussões da 39a Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Química (SBQ). Para abrir o evento na noite do dia 30 de maio, no Teatro Rio Vermelho, em Goiânia, a especialista em Química Medicinal Inorgânica, professora Heloisa de Oliveira Beraldo, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), foi convidada a proferir uma conferência inspiradora sobre o papel da Química Inorgânica na descoberta de novos fármacos e medicamentos..
|
Foto: Lúcia Beatriz Torres / Serendipity |
Pesquisadora associada ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Fármacos e Medicamentos (INCT-INOFAR) e membro integrante do seu Comitê Gestor, a professora Heloisa já realizou importantes contribuições para a Química Medicinal Inorgânica, por meio de estudos de complexos metálicos bioativos, seus mecanismos de ação e suas interações com alvos biológicos tais como o DNA e enzimas. |
A Profa. Heloisa Beraldo (UFMG) ministrou a Conferência de Abertura da
39ª Reuniao Anual da SBQ |
Em sua conferência na SBQ, traçou um histórico das pesquisas com medicamentos à base de metais, desde a Antiguidade até os dias atuais, fornecendo vários exemplos de como os metalofármacos podem ser planejados para atuar na terapia de diferentes doenças.
A professora Heloisa Beraldo dedica-se à pesquisa em Química Medicinal Inorgânica há 37 anos, uma área multidisciplinar que considera fascinante por ser ainda jovem e oferecer inúmeros desafios. Segundo ela, os metais oferecem uma plataforma importante de possibilidades para construção de novas moléculas bioativas, em razão da diversidade de geometrias que podem assumir em seus complexos, de seus vários estados de oxidação e reatividade.
Um mercado bastante rentável
Compostos de ouro contra artrite reumatóide. Compostos de bismuto para tratar úlcera gástrica. Complexos de ferro no controle das emergências hipertensivas. Compostos de antimônio para combater a leishmania. Radiofármacos contendo o tecnécio para realizar diagnósticos por imagem. “
Desse modo, os metalofármacos desempenham um papel muito importante na medicina atualmente” - ressaltou a professora especialista em Química Inorgânica, destacando que essa é uma área que pode ser bastante rentável para a indústria farmacêutica.
Para ilustrar, Heloisa Beraldo apresentou dados das vendas de compostos de diagnóstico. Segundo fontes consultadas por ela, essas substâncias arrecadam, geralmente, entre 100 a 400 milhões de dólares por ano, sendo que o Myoview e Cardiolite, agentes de imagem de coração à base de tecnécio, perfizeram um montante de 675 milhões de dólares só em 2007.
Já as vendas com suplementos à base de metais apresentam-se ainda mais promissoras. De acordo com dados recolhidos pela professora, espera-se que cresçam a uma taxa de 2,4%, anualmente, com a expectativa de faturamento de 15,8 bilhões de dólares, em 2018. Ao fornecer esses dados, a professora fez uma crítica bem humorada ao uso indiscriminado destes suplementos: “
As formulações que são vendidas livremente em farmácias, ou até em supermercados, contém quase que “uma tabela periódica inteira”, o que não énecessariamente bom para a saúde, mas muito interessante para a indústria farmacêutica.”
Pinceladas da história da Química Inorgânica
|
Paul Ehrlich e complexo de arsênio em estampa de nota de 200 marcos alemães |
A história recente da Química Medicinal Inorgânica começa com os trabalhos de Paul Ehrlich (1854 - 1915), que preparou vários compostos de arsênio e os testou, com sucesso, na terapia da sífilis. Esses são os primeiros exemplos de compostos bio orgânicometálicos, que não apresentam ligações metal carbono. Paul Ehrlich ganhou o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia, em 1908, e sua dedicaçāo ao estudo de complexos metálicos encontra-se imortalizada na estampa de uma nota de 200 marcos alemães, que mostrava a imagem de Ehrlich e um complexo de arsênio.
O segundo personagem muito importante desta história, segundo a professora Heloisa Beraldo, foi Alfred Werner (1866 - 1919), Prêmio Nobel de Química de 1913. Werner foi o primeiro químico inorgânico a receber a honraria, por seu trabalho extraordinário em química de coordenação, explicando a formação e a geometria dos complexos metálicos.
O terceiro personagem extremamente relevante para a Química Medicinal Inorgânica foi o físico Barnett Rosenberg (1926 - 2009), que demonstrou as propriedades antitumorais da Cisplatina. Esse composto já havia sido sintetizado no final do século XIX, mas a sua atividade antitumoral só foi descoberta por Rosenberg, em 1965, por mero acaso. Quando o cientista estava estudando o efeito de um campo elétrico em uma colônia de bactérias, observou que havia uma interrupção da divisão celular. Suas pesquisas revelaram que a platina dos eletrodos estava reagindo com o meio de cultura, formando vários compostos, entre os quais a Cisplatina.
Cisplatina, arquétipo de um composto inorgânico
“A Cisplatina é a queridinha da Química Inorgânica, pois não contém nenhum átomo de carbono. É um arquétipo de um composto inorgânico” - observou a professora da UFMG. Segundo ela, esta descoberta constituiu um marco histórico e levou a um grande interesse por complexos metálicos com propriedades farmacológicas. |
Cisplatina
|
A Cisplatina entrou na clinica, em 1978, conseguindo reduzir o câncer de testículo que matava 80% dos pacientes, para uma doença hoje curável em 90% dos casos. O seu mecanismo de ação, tadavia, não está completamente elucidado. A Cisplatina foi descoberta ao acaso, mas compostos de segunda geração, como a Carboplatina, usada contra o câncer de ovário e outros tipos de tumores, foram fruto de planejamento.
Hoje estima-se que de 50 a 70% dos pacientes de câncer sejam tratados com um composto de platina; entretanto, esses fármacos apresentam limitações, tais como sérios efeitos colaterais e o aparecimento de resistência celular. Desse modo, vários grupos de pesquisa têm procurado desenvolver novos complexos metálicos que pudessem substituir ou serem administrados em combinação com os complexos de platina.
Pesquisas “prata” da casa
Foto: Marcus de Melo / Divulgação SBQ |
|
Plateia lotada na Conferência de Abertura da SBQ
|
Nos últimos anos, o grupo da professora Heloisa Beraldo demonstrou que complexos de ouro (I), ouro(III), antimônio(III) e gálio(III) podem exibir potente efeito antineoplásico contra células de tumores sólidos e leucemias. Em alguns casos, os complexos estudados mostraram bom índice de seletividade, sendo mais citotóxicos frente a células tumorais do que frente a células sadias. Segundo estudos feitos pelo grupo da professora Heloisa, na UFMG, esses complexos agem por mecanismos distintos e diferentes daqueles dos medicamentos à base de platina. |
Além dos antitumorais, o seu grupo ainda dedica-se ao estudo de complexos metálicos como candidatos a fármacos antimicrobianos e antiparasitários, investigando interações entre esses compostos e biomoléculas-alvo e seus mecanismos de ação. Junto com seus alunos e colaboradores, a professora Heloisa demonstrou pela primeira vez que complexos de gálio poderiam ter ação antifúngica.
Usado clinicamente como inibidor da enzima ribonucleosídeo difosfato redutase (RDR), o nitrato de gálio apresenta um mecanismo de ação chamado “Cavalo de Troia”. Como galio(III) e ferro(III) tem razão carga/ raio muito similar, muitos sistemas biológicos não distinguem os dois íons metálicos, fazendo com que o gálio substitua o ferro na estrutura da enzima, inibindo a sua açāo. Ou seja, o gálio mimetiza o ferro sem, no entanto, ser capaz de exercer o papel bioquímico que o ferro faz no metabolismo. Metal essencial para o crescimento da maioria dos microorganismos, o ferro é necessário em vários caminhos metabólicos e na síntese do ADN.
Novos tratamentos para Doença de Alzheimer
A coordenação a metais também pode atuar na descontaminação de um órgão por metal. Na “quelatoterapia” a ideia é administrar um ligante orgânico que vai coordenar (se ligar) os metais que estão em excesso no organismo, com posterior excreção do complexo. Essa terapia, baseada em agentes quelantes, é muito utilizada nas intoxicações por metais em acidentes de trabalho e tem sido proposta como uma possível estratégia para o desenvolvimento de novos tratamentos para doenças neurodegenerativas, como o Alzheimer.
No início dos anos 90, ao analisar o cérebro de pacientes com Alzheimer após sua morte, pesquisadores detectaram evidências de excesso de cobre, zinco e ferro. Pesquisas posteriores demonstraram que esses metais eram críticos na agregação do peptídeo β-amilóide (Aβ). O depósito de placas β-amilóides (Aβ), ou de agregados mais solúveis do peptídeo no cérebro, têm sido apontados como uma das causas das alterações cerebrais características da Doença de Alzheimer.
|
Foto: Marcus de Melo / Divulgação SBQ |
“Surgiu então a ideia de usar a “quelatoterapia” para reduzir ou retirar esses metais do cérebro, evitando assim a sua união com as placas β-amilóides” – explicou a professora. Em sua conferência, Heloisa Beraldo demonstrou que agentes quelantes promoveram a desagregação das placas de Aβ in vitro e diminuiram a deposição de placas de Aβ no cérebro em modelos animais com ganhos de cognição. |
A Profa. Heloisa Beraldo apresentou contribuições do seu grupo para
Doença de Alzheimer |
O grupo da professora Heloisa tem feito algumas contribuições recentes no planejamento de ligantes para complexar cobre(II), um íon metálico que poderia, segundo essa teoria, estar envolvido na agregação do peptídeo β-amilóide, um dos marcadores da Doença de Alzheimer.
Como se pode observar no transcorrer da conferência de abertura da SBQ, os metais são capazes tanto de fazer o mal quanto o bem. Podem induzir ou curar o câncer, por exemplo, sendo que alguns são capazes de fazer até as duas coisas, como é o caso do arsênio e do vanádio. Sabemos que a boa saúde e vida longa é resultado de um equilíbrio tênue entre o excesso e a deficiência de metal. Segundo a professora Heloisa Beraldo, o controle da homeostase metálica é algo muito difícil de se conseguir com os metalofármacos, o que abre um amplo e desafiante campo de estudo para pesquisadores que querem criar e empreender na área, dedicando-se à Química Medicinal Inorgânica para planejar novos fármacos e medicamentos.
Currículo
Apesar do sotaque mineiro, a professora Heloisa de Oliveira Beraldo nasceu em São Paulo e mudou-se para Minas Gerais quando tinha apenas 8 anos. Veio de uma família em que se falava sobre ciência diariamente. É filha do saudoso fisiologista Wilson Teixeira Beraldo, que ao lado de Maurício Rocha e Silva e Gastão Rosenfeld, foi um dos responsáveis pela descoberta da Bradicinina - substância envolvida na regulação da pressāo arterial, que originou a base de diversos medicamentos anti-hipertensivos. Contagiada pelo entusiasmo de seu pai, decidiu seguir a carreira cientifica.
Heloisa formou-se em Química pela UFMG, em 1974, e obteve o título de mestre em Química pela mesma instituição, em 1979. Pela Universidade Paris VI, na França, concluiu o seu doutorado, em 1984, e alguns anos depois realizou um estágio de pós-doutorado na
Illinois State University (EUA), em 1996. Heloisa Beraldo tem um currículo com 130 trabalhos publicados (
web of Science), com mais de 2.600 citações e fator h 29. É membro Titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e revisora de uma diversidade de periódicos científicos. Nas horas vagas, a professora gosta de participar de um grupo vocal que canta choros e MPB.